Não uso coroa, não tenho um castelo e
não pretendo me casar. Os filmes da Disney, que eu assistia quando era criança,
só serviram pra me fazer ter certeza que eu não queria ser aquela figura
patética que vê a vida passar em cima de uma torre. Na verdade, nem se eu
quisesse, eu seria. Você deveria ter sacado quando viu que não me pareço
esteticamente com uma. Enquanto você me esperava todos os dias com cabelo
milimetricamente moldado em gel e roupas de marca exalando a melhor fragrância
Dior, eu aparecia sem unha feita, cabelo seco ao vento e sem uma base no rosto.
Não tenho tempo, dinheiro e nem disposição para mudar isso. Prefiro sair na rua
igual uma mendiga atropelada por um bode para ter mais uma hora de sono,
especialmente no inverno. Prefiro torrar meu dinheiro comendo o suficiente para
não conseguir andar pelos próximos 30 minutos, do que fritando minha cabeça
literalmente em um secador e metaforicamente com fofoca de salão. Sim, comia
igual a uma vassala, inclusive na frente dos seus convidados. E ostentava com
louvor meus culotes conquistados com duras semanas de quebras de dieta com
chocolates de todas as espécies. Mas era melhor do que quando eu cismava de
cozinhar um prato para comemorar alguma data comercialmente memorável e você
esboçava, em semblante contraditório, o quanto tinha gostado. Eu nunca
serei a Cinderela que sua mãe espera pra você. Além de não saber cozinhar, não
domino a arte de varrer, não sei a diferença entre marca de sabão em pó, e
minhas roupas saem mais amarrotadas do que antes de eu me dispor a passar. Ah,
e tem a sua mãe! Vocês dois entravam em consenso com frequência ao meu
respeito, não é?! Poderiam até me chamar para a discussão. Eu concordaria em
grande parte, especialmente com o tópico que falava da minha falta de meiguice.
Hoje, ofereço até provas. O quadro rosa que você me deu para pendurar no meu
quarto preto e branco não sumiu. Eu dei ele de presente de 15 anos pra uma
prima distante. Ah! Lembra do Fofinho, cachorro de pelúcia que você me deu
já batizado? Eu chamava ele de Ares, quando você não estava perto. E
quando sua mãe vinha me mostrar fotos suas de infância? Eu me segurava
para não zoar seu cabelo ridículo que ela penteava ao estilo Zacarias, e me
limitava falsamente a "Que gracinha! Parece um anjinho nessa versão
miniatura! Tomara que nosso filho seja assim (e cresça longe de você)".
Nunca vou esquecer quando ela ouviu o meu primeiro 'Puta que pariu!', dito com
a boca cheia porque a TV parou de pegar na hora da reportagem sobre o
Centenário da I Guerra Mundial. Soltei mentalmente um “puta caralho” quando
soube que o filho duma quenga do seu primo tinha chutado a porra do fio daquela
merda de televisão. Ainda bem que ela não lia mentes. Se lesse, travaríamos uma
disputa telepática sobre o politicamente correto que ela defende e que eu,
simultaneamente, abomino. E não foi uma reação desproporcional. Você sabe que
eu adoro guerra. Até tinha que esconder os DVDs do “Bastardos Inglórios” e “Operação
Valquíria”, pra me convencer a ver P.S Eu te Amo! E não me venha com
hipocrisia. Embora reclamasse que eu tratava as nossas D.R's como estratégias
de combate, adorava o cessar fogo, que só fazia explodir o que tinha sobrado de
nossa integridade física. No dia seguinte, ainda quando você estava dormindo,
eu levantava pé ante pé, para fazer o que encabeça minha lista de coisas
indispensáveis: meu trabalho. Sim, o que paga mal e que ocupa meu tempo
disponível para colher flores no bosque pra você. Mas o mesmo que me dava poder
no inicio do mês de torrar o meu dinheiro sem te dar satisfação. Meu bem, eu
não tenho vocação pra cuidar da casa e usufruir do salário alheio. Até porque,
você não entenderia, como nunca entendeu, a minha necessidade de gastar metade
dele com ingressos de jogos de futebol e não com lençóis de fio egípcio pra
nossa cama. E não aceitava tampouco que o estádio é a minha independência do
mundo, e que, se você não estivesse na arquibancada do meu lado, não ia receber
a atenção que esperava. Da mesma forma que cobrava mais que monossílabos quando
eu estivesse lendo uma análise esquerdista das eleições ou de mais um
projeto de lei absurdo prestes a ser votado no Congresso. Fato é que você nunca
aceitou muito bem a ideia de que a hipótese da aprovação da redução da
maioridade penal me deixava mais apreensiva do que a de você sair com seus
amigos depois de brigar comigo por algum motivo idiota. Bem que eu poderia
recusar o seu convite para passar férias em Miami, para ficar aqui, na rua, com
bandeiras em punho sem hora pra voltar pra casa. Não tinha jeito de dar certo
mesmo. E a minha responsabilidade nesse desfecho de insucesso não é o fato de
eu saber que não era a princesa que você achava e não ter te contado. A minha
culpa é por não ter reconhecido que eu que não queria um príncipe. Eu queria o
cavaleiro sem sangue azul. Que chega sujo em casa depois de um dia de trabalho.
Que entende o que eu quero dizer, sem censurar minhas palavras. Que acha minha
pipoca de microondas a melhor de todos os tempos. Que não enxerga minhas
estrias e é autossuficiente para não precisar dos meus serviços de casa. Que
tem espírito de luta e segura minha mão na batalha contra o conformismo. E,
especialmente, que não acredita em estereótipos e muito menos em contos de
fadas.
Tetê Magnani
eu nunca serei a princesinha que ele quer ao lado dele ;
ResponderExcluirEngraçado, irônico, utópico em partes e, sincero. Bem, eu não sou escritor nem crítico, mas é um excelente texto acerca da mulher moderna. O texto quebra o paradigma da mulher frágil e delicada, traçando o perfil da mulher determinada e disposta a lutar pelos seus objetivos.
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